5 críticas à ditadura das viagens (escritas por alguém que viaja)

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Este texto não é originalmente meu. Aviso logo assim de cara que não é meu porque ele tem tanto a ver comigo que facilmente poderia ser. Já até escrevi aqui no blog sobre praticamente todos os assuntos falados nele.

O autor se chama Sebastián Defeo, ele escreve no site Matador Network e tem o Instagram @holamondook junto com a esposa, Cecilia. O texto original está escrito em espanhol. Como me identifiquei demais, quis trazer pra cá e fiz uma tradução livre, reescrevendo algumas coisas e colocando também minha visão e minhas opiniões.

Sebastian começa dizendo que há algo que não reconhece nenhuma fronteira. Está em todas as profissões e em todas as latitudes, independentemente de você viver toda a sua vida em um só lugar ou de você viajar pelo mundo sem data de retorno. É o ego.

Pessoas viajam pelo mundo para encher o passaporte de carimbos e também para alimentar a alma. O que é ótimo. Mas o ego acaba se tornando (ou se mostrando) um problema.

Porque muitas dessas pessoas começam a criticar quem não viaja, a se sentirem especiais, a olhar com desdém para quem fica feliz em trocar de carro ou encontrar um emprego no qual gostaria de ficar para sempre… Começam a competir com outros viajantes para ver quem visitou mais países, quem percorreu mais quilômetros, quem viveu experiências mais intensas.

Às vezes é difícil a gente não cair nessas ciladas – e falo especialmente dos produtores de conteúdo – porque, como disse o autor, o ego não reconhece nenhuma fronteira e também está com a gente, o tempo todo.

Ele diz que não quer isso. Eu também não quero. Várias vezes até comento sobre como me policio para que o blog não se torne um espaço que dita regras.

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Pensando em tudo isso Sebastian escreveu sobre cinco pontos importantes, desmistificando o que costumam dizer por aí a respeito das viagens, muitas vezes colocando como verdades absolutas. São temas que têm tudo a ver com o que eu acredito e com o caminho que estou buscando seguir.

1 – Viajar não te torna uma pessoa melhor

Juro que esse é um título que eu já tinha anotado há tempos para qualquer hora fazer um texto – e não fiz. E é o tipo de coisa que parece que não é necessário esclarecer, mas é. Viajar não te torna necessariamente mais sensível ou mais inteligente, nem te transforma em alguém interessante.

Mas é algo que dizem muito, que insistem. “Viaje que você vai crescer”. “Viaje que você abrirá sua cabeça”. Mas, na prática, não é bem assim!

Tem muita gente acreditando estar conectada com o universo inteiro, mas não está conectada sequer com as pessoas ao redor. Tem muitos exploradores do mundo que não se atentam ao impacto ambiental em suas aventuras. Tem muito cidadão do mundo que no dia a dia tem falas racistas – o autor apontou ter visto isso e é algo que vejo muito também, recentemente inclusive em um grupo cheio de pessoas viajadas. Tem muitos nômades digitais que julgam quem não faz o mesmo e se acham especiais e únicos. São alguns exemplos que só mostram que viajar não torna ninguém necessariamente uma pessoa melhor. Até escrevi mais ou menos sobre isso.

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Muitos gostam até de frisar que não são turistas e se autodenominam viajantes ou mochileiros ou qualquer outro termo que faça com que se sintam superiores aos outros. Falei sobre isso também em um texto.

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E às vezes as pessoas com quem estão (estamos!) conversando só querem saber se gostaram (gostamos) da cidade ou do país diferente, o que acharam da comida…

2 – Nem todo mundo pode viajar

“Viajar é privilégio” é o título de outro texto meu no qual falo exatamente sobre essa questão, que muita gente não enxerga ou não quer enxergar. Não é todo mundo que pode. Mas tem muita gente que viaja e tende a achar que sim, a vender essa ideia e a cair na mania terrível de usar a exceção como exemplo, o que só confirma ainda mais a regra.

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Esses casos raros, do tipo “um agricultor paquistanês de 89 anos, pobre, analfabeto, relutante e sem olhos, e assim por diante” não chegam a 1% daqueles que estão viajando. Os demais são de classe média, com certo nível de educação, apoio familiar e rede de amigos, sem pessoas que dependem deles, sem grandes problemas de saúde física ou mental, sem sofrer preconceitos em relação à cor de pele, religião ou nacionalidade – o que muitas vezes fecha portas.

Existem limitações que a gente não vê, experiências diferentes. Nós devemos reconhecer os privilégios que cada um tem. Foi um muçulmano que disse pra ele, mas, de novo, poderia ter sido eu.

Ele cita o exemplo de um casal canadense que estava viajando por seis meses pela Ásia e justificou que o Canadá é muito longe e não teria sentido viajar por apenas 15 dias ou um mês. E que é impressionante como tem gente que realmente acredita que esse era o motivo – e não o fato de serem de um país rico, estável, com uma moeda forte, com uma condição social favorável e uma situação profissional que possibilitava voltar e se inserir novamente no mercado de trabalho sem dificuldades.

Em outra ocasião, no Vietnã, dois homens contaram que conheceram viajantes europeus que diziam que haviam trabalhado um ano fazendo faxina em um hospital, o que permitiu que economizassem para viajar. Os vietnamitas riram. “Se varrermos um hospital por um ano, dois anos, cem anos, não será suficiente para nós.”

Não dá para dizer a eles que acreditem nos sonhos. Ou que onde eles veem um “não” existe um “sim”. Ou contar que quebrou esse paradigma de viver apenas para trabalhar e consumir, saiu da caixinha e foi viver uma vida livre. Frases beeem comuns no meio dos conteúdos de viagem, né? Engraçado que esse cara mora na Ásia, mas eu aqui no Brasil vejo as mesmas coisas, penso do mesmo jeito.

É muito necessário olhar para nós mesmos e reconhecer nossos privilégios, perceber que nem todos têm as mesmas oportunidades, as mesmas liberdades, as mesmas responsabilidades, que nem todos começam essa vida no mesmo ponto de partida. Simples assim.

3 – Viajar não necessariamente cura você

Muitos acreditam nisso, muitos vivem colocando como se fosse a mais pura verdade. Quantas dessas frases a gente não vê o tempo todo por aí? “Se você não sabe o que fazer com sua vida, viaje”. “Se seu gatinho morreu, viaje”. “Ir para terapia? Viaje e deixe todos os problemas para trás”.  É mais um tema que já abordei aqui.

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É o ego, de novo, fazendo algumas pessoas se considerarem parâmetro do que é certo ou errado. “Se isso me fez bem, vai fazer para você também”. E ainda reforçam que se não aconteceu da mesma forma com você, se você não melhorou, bem, você fez errado. Alguns até vendem cursos para serem como eles. Cursos sobre como ser um viajante, como viver como nômade digital…

É claro que viajar pode ajudar e fornecer exatamente o que a gente precisa em determinados momentos. Mas não é uma receita para ser feliz.

O autor lembra uma vez que tentou convencer um amigo (que tinha acabado de se separar, deixado o trabalho e queria uma mudança de vida) que uma viagem era tudo o que precisava. Como se fosse a única opção para estar bem e o único impedimento fosse o medo. Mas o amigo simplesmente não se animou com a ideia.

Sendo que ele mesmo já tinha vivido algo parecido e sabia que a viagem não tinha curado nada. Ele diz que alguma angústia partiu, sim. Mas outras vieram. Porque não existe uma cura única. E não devemos impor aos outros o que achamos que eles precisam.

4 – Viajar não é como um filme de Hollywood

Me lembrei de uma vez em que eu estava mal no trabalho, querendo uma mudança, aí pensei em me organizar para fazer um intercâmbio de um mês durante as férias, na esperança de que ia voltar renovada porque tudo ia ser incrível. Mandei mensagem para uma amiga que já tinha vivido essa experiência, ela falou todos os pontos positivos, mas no fim fez questão de deixar bem claro: “é ótimo, mas você precisa ir ciente de que não é ‘Comer, Rezar e Amar’”, se referindo ao livro/filme.

Viajar tem momentos ruins porque, basicamente, viver tem momentos ruins – ora ora se eu também já não falei essa frase ou algo do tipo algumas vezes em textos diversos por aqui. Um dos mais recentes desromantiza o glamour que muita gente gosta de mostrar ao viajar sozinha.

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Dúvidas, frustrações, raiva, tédio, angústia, tristeza, nostalgia, crises existenciais, mosquitos, dor de barriga em lugares desconfortáveis, dor de barriga em lugares desconfortáveis ​​com mosquitos mordendo você enquanto você também tem uma crise existencial, tudo isso acontece. Mas raramente isso é compartilhado!

Essa visão romantizada que ele coloca tem muito a ver com os filmes. Eles nos fazem acreditar que um dia sairemos das trevas e o mundo inteiro nos reconhecerá por sermos especiais, que passaremos de patinhos feios a cisnes, que toda a angústia vai desaparecer e o final será sempre feliz. Ou vai me dizer que você nunca imaginou ter aquela vida que viu no cinema?

Com as viagens é igual. Especialmente os produtores de conteúdo (de novo e, de novo, essa é uma preocupação minha) escolhem mostrar apenas o lado bom, falar que tudo é maravilhoso, que o lugar é mágico, fazendo todo mundo desejar a mesma vida. E aí eles vendem o curso ou a palestra que vai ensinar a ser assim…

5 – Viajar não é a única (nem a melhor) forma de ser feliz

É simples. Há pessoas que não querem viajar, pessoas que não estão interessadas em viajar, que não gostam, que preferem fazer outra coisa. E tá tudo certo.

Muitos viajantes dizem que aqueles que não viajam são acomodados, estão na zona de conforto, enquanto eles (viajantes) estão se arriscando para buscar a vida dos sonhos. Se acham melhores, claro. Ego. Já falei também aqui sobre esse papo.

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O fato é que cada pessoa tem seu próprio horizonte, cada um tem seu próprio caminho. E o que todo mundo escolhe é bom. Não somos a medida de nada, o norte de nada. Existem muitas maneiras de ser feliz.

 

Muitos destes temas têm sido debatidos por mim e pela Amanda do blog As Viagens de Trintim no nosso podcast “Além do Olhar”, que estreou recentemente e pretende mostrar exatamente esse lado B do universo das viagens. Ouça aqui no Spotify ou procure “Além do Olhar” na sua plataforma de áudio preferida.

 

* Os meus textos que coloquei aqui e outros nesta mesma linha, com minha visão sobre viagens e a vida, estão no meu livro “Eu não quero chegar a lugar algum”

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