Viajar entre amigas sem o(a) companheiro(a) NÃO É viajar sozinha

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A notícia de que duas mulheres argentinas foram assassinadas durante uma viagem ao Equador, em 2016, mexeu comigo por vários motivos. Um deles, óbvio, pelo fato de eu ser uma mulher que viaja sozinha. É impossível a gente não se colocar no lugar, não pensar em tantas e tantas que passam por isso… Seguimos lutando para que não mais aconteça, mas é, também, uma luta interna para não deixar que esse tipo de coisa nos amedronte, desanime e nos impeça de continuar.

O outro motivo incomodou até mais e vira e mexe ainda acontece. Foi a abordagem da mídia, a cada notícia enfatizando que elas estavam “viajando sozinhas”. O mesmo discurso passou imediatamente a ser repetido pelas pessoas, que no fundo também pensam assim. “Estavam sozinhas”. Quando, na verdade, elas estavam juntas. Elas eram duas. E mesmo que fosse só uma e que estivesse efetivamente sozinha, isso não abre brecha para que aconteçam crimes. Como publicou na época o site Think Olga, em texto que compartilhei na página do blog no Facebook:

“Elas não estavam sozinhas, tinham uma à outra e, ainda assim, morreram brutalmente em mais dois estúpidos feminicídios. É uma vergonha, enquanto sociedade, admitirmos que uma mulher sozinha é presa fácil. Não aceitamos mais ouvir que ‘É assim mesmo…’. Não é. Queremos não apenas viajar sem homens, mas andar e sair à noite sem homens, viver uma vida inteira sem homens e continuar vivas, não violadas, sem traumas, sem medo. Queremos existir sozinhas, desacompanhadas, sem que isso seja um risco.”

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Arte: Cari Vander Yacht via Think Olga

A partir desse episódio eu resolvi que ia falar mais sobre o tema no blog – até então eu só compartilhava dicas gerais de viagem, sem dar esse foco. Ainda demorou um tempinho até estruturar aqui, colocando em prática a ideia de publicar não só meus textos, mas também relatos de outras mulheres que viajam sozinhas. Falar disso virou meu tema principal. Já participei de rodas de conversa, de palestras, de entrevistas…

Numa dessas, uma moça veio me contar que ela sempre viajava sozinha. “Uma vez por ano eu e mais cinco amigas viajamos sozinhas”. Levei um tempo para assimilar que ela estava dizendo que viajavam sem os maridos. Esse é só um dos muitos exemplos, porque não foram poucas vezes em que já vi gente se referindo a mulheres em grupo dizendo “elas estavam sozinhas”.

Na ocasião, reforcei o quanto era válido o que ela fazia (porque eu realmente acho, muito!), mas aproveitei para explicar que não achava legal falar dessa forma, que seria melhor ela dizer (e entender) que uma vez por ano viaja entre amigas e ponto. E coloquei meu pensamento para que todas ali presentes pensassem junto: tem algo de muito errado quando, mesmo juntas, consideram que estamos sós.

É inadmissível que em 2020 (faço questão de frisar a data em praticamente todos os meus textos sobre o tema, porque sei lá, vai que alguém cai aqui por acaso e acha que estou escrevendo diretamente de 1920)… mas enfim, é inadmissível que a sociedade ainda defina “mulher sozinha” ou “mulheres sozinhas” como aquela(s) sem um homem. Tá enraizado, é aquele tipo de coisa que muita gente fala/faz e nem percebe. E é por isso que a gente tem de desconstruir. Sempre!

 

Viajar sozinha tendo um(a) companheiro(a)

Para quem é solteira a pergunta é sempre “mas você não tem namorado/marido?” E para quem tem, a pergunta é “seu namorado/marido deixa?”. Duas mulheres podem falar dessa questão muito melhor que eu. A Thais, do Mulheres Viajantes, e a Karilayn, do Kari Desbrava, que são comprometidas, viajam sozinhas e escrevem sobre isso.

Texto da Kari: 4 motivos para continuar viajando sozinha mesmo namorando 

Texto da Thaís: E ele deixa?

Mais textos para refletir

A Fernanda, do blog Tá indo pra onde?, que também viaja sozinha e escreve sobre isso, fez um texto sobre o tema e pontuou algumas coisas importantes. A pergunta que ela deixa é essencial: “Por que a companhia da sua amiga não é o suficiente para ser considerada companhia?”

Texto completo: Viajar com as amigas e sem o marido ou namorado NÃO é a mesma coisa que viajar sozinha 

Na publicação do texto dela no Facebook o assunto repercutiu. Peguei uma frase da Aline, do blog Uma Sul Americana, mais uma da lista de blogueiras que viajam sozinha: “É preciso quebrar vários conceitos para entender que viajar com uma amiga não é estar sozinha. Esses discursos ou mesmo essa sensação é só reflexo de uma sociedade que coloca nas esposas e mães uma responsabilidade imensa. É quase uma algema. Agora percebam como não existe esse tipo de post sobre maridos e pais.”

Outra Aline, do blog Vem que te conto, que fala de viagens em família e tem um projeto mostrando que mulheres que são casadas e têm filhos podem (e devem) viajar sem o marido e as crianças, colocou um ponto de vista interessante e que só mostra, mais uma vez, como o meio em que vivemos é ainda muito machista e sobrecarrega a mulher de diferentes formas. “Para muitas mulheres com filhos, a sensação de poder viajar sem as crianças é tão forte que o entendimento delas, a sensação que elas têm, é de que realmente estão viajando sozinhas. Lógico que efetivamente não estão sozinhas, mas é o sentir, a ‘liberdade’. Detalhe que não pensam assim pela ausência do marido, mas pela ausência das crianças.”

Tudo isso me fez pensar em um tipo de texto que eu detesto e que vez ou outra aparece por aí, escrito por diferentes pessoas/veículos, dizendo que viajar traz mais felicidade que casamento. Primeiro porque as escolhas são individuais e segundo porque não são excludentes. Mas, depois, escrevendo aqui, me peguei refletindo no quanto, para algumas pessoas – aliás, para algumas mulheres! – são, sim, excludentes. O que é mais um reflexo do machismo estrutural.

Leia também:
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5 críticas à ditadura das viagens (escritas por alguém que viaja)

O que, afinal, é viajar sozinha?

Então a gente precisa deixar claro que viajar sem o(a) namorado(a)/marido(esposa), só entre amigas, não é viajar sozinha! Eu até entendo o contexto, mas gente… apenas não. Dizer isso é um desserviço a todas as mulheres que lutam pela valorização da nossa independência, pela validação da nossa existência mesmo sem um homem ao lado. Dizer isso é reforçar todo um sistema de opressão que a gente vem, a duras penas, tentando combater a cada dia.

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Vivo batendo na tecla de que não tem juízo de valor, que cada tipo de viagem tem seu lado bom e seu lado não tão bom, que não existe jeito certo ou errado de viajar… E falo exatamente pra que ninguém confunda as bolas, porque é meio que a partir disso que vem uma necessidade de se mostrar inserida e dizer que também viaja sozinha, o que aparentemente parece uma soma, mas na verdade acaba gerando o efeito contrário e enfraquece o movimento.

Quer ir sozinha? Vá! Te garanto que será um grande aprendizado. Mas não quer ou não precisa? Tudo bem. Ninguém precisa dizer que viaja ou já viajou sozinha só para se colocar como parte de um movimento que está em alta, que é o do empoderamento feminino. Existem outras formas de se empoderar, de se desconstruir, e vai ser muito mais eficaz porque vai ser verdadeiro. Falo de viagens porque é minha vivência, mas há muitas possibilidades e cada uma se encontra de um jeito.

Leia histórias inspiradoras de mulheres viajando sozinhas.

E, no fim das contas, uma mulher viajar sozinha não é (só) sobre viagens. Não é um estilo de vida – embora possa ser, também. Mas é algo muito maior. É quebra de paradigmas, é atitude política, é resistência. É ir contra todo um sistema que desde sempre vem tentando mostrar que não podemos. É combater papéis que a sociedade ainda insiste em nos colocar. É um movimento coletivo, mas sempre buscando as liberdades individuais, a legitimação de todas as escolhas, inclusive a de não querer.

 

Foto principal: Imagem de Joan Tura por Pixabay
Foto amigas na praia: Imagem de Arek Socha por Pixabay

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