“Segura na mão de Kali e vai!” – por Leticia Terumi Kita

“Viajar sozinha nunca esteve muito nos meus planos. Não por nada, eu sempre me considerei uma mulher independente, empoderada, e adjetivos que cabem numa feminista graduada. Mas o conceito de viajar sozinha sempre me deixou um tanto desconfortável. Estar tudo na minha mão nunca foi um atrativo também.

Essa percepção começou a mudar com meu intercâmbio, onde vi que pode até ser melhor não depender de mais ninguém além de mim mesma. Viagens turísticas e até com amigos/as também foram deixando de ter a mesma graça e achei que pudesse ter um roteiro diferente e menos clichê.

Foi quando, numa mistura de falta de amigos (risos) com emprego novo (e mais $$), decidi viajar sozinha para um lugar que nunca passou pela minha cabeça! Com uma semana de antecedência comprei passagem para a Índia.

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Despreparos à parte (não sabia absolutamente nada, nem havia pesquisado, só achava um destino incrível), meu planejamento foi focado no objetivo pessoal que tenho ao viajar: conhecer o local pelos olhos do cidadão. Instalei o Couchsurfing e comecei a interagir com possíveis anfitriões. Arrisquei muito! Nunca tinha tido nenhuma experiência e a primeira seria lá. Logicamente, sei dos perigos que ser mulher trazem e filtrei apenas casas de família (de preferência com filhos pequenos) ou mulheres solteiras.

Nunca foi tão fácil. Mesmo com planejamento de uma semana, consegui uma casa em cada lugar que ia ficar, com perfis variados: uma família em Mumbai, um amigo de uma anfitriã em Goa, uma divorciada em Bangalore, uma mulher solteira em Chennai, uma intercambista colombiana em Pune, um hostel em Delhi e outro amigo da anfitriã em Jailsamer.

Fascinada pelo movimento feminista indiano e a Gulag Gang, também senti que poderia correr algum risco. Por isso escolhi apenas cidades grandes e mais acostumadas com a ideia de mulheres independentes e com a igualdade de gênero. Sempre preparada para qualquer encrenca que pudesse vir, tirei absolutamente todas as dúvidas com relação a essa questão específica com as mulheres que me abrigariam. Meus pais chegaram a me pedir algumas vezes para reconsiderar, antes de aceitarem que nada iria me parar, e apenas se contentaram em ter meus endereços de lá.

Chegando lá, Mumbai. Que choque. Que surpresa. Já de cara, muita sujeira, muita gente, muitos animais na rua (tudo: peru, galinha, vaca, cabra) muito trânsito, muitos cheiros, barulhos, sensações e uma moeda incrivelmente barata (Rs 17 = R$1). Eu, que tenho horror a países muito certinhos, adorei.

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Souvenir de foto do Gate of Mumbai e quadro de um museu local

O caminho para minha primeira casa foi todo com medo. Eu não sabia, mas lá as ruas não são regulares, marcadinhas, nem sempre pavimentadas, sequer têm nome, e em todos os lugares há muita sujeira e moradores de rua em condições miseráveis. Como era meu primeiro contato, achei que estavam fazendo outro caminho, ou, pior, sendo levada para um lugar perigoso. Meu segundo maior medo: como as ruas são mal sinalizadas, o motorista perguntou algo que não consegui entender. Fui rápida. Liguei para meu anfitrião e eles se falaram pelo meu telefone. Acabei chegando.

Minha primeira casa era um condomínio no final de uma rua que tinha uma feira diária. Em toda sua extensão a rua seguia sem pavimento e com moradores de rua que improvisavam um lar com barracas da feira. Nunca imaginei que ia chegar a um condomínio fechado, de muros altos, segurança particular e elevadores. Entrei e outra surpresa: ninguém em casa, apenas o serviçal (lá existe todo aquele sistema de castas que merece um texto à parte). Que choque novamente. Fui recebida com uma incrível simpatia, comidas à vontade e total liberdade, tendo inclusive a casa só pra mim em alguns momentos. Mais tarde chegaram os pais e o filho mais novo.

Aqui um parêntesis: os indianos são pessoas muito boas. Têm bondade genuína no coração e vontade de querer bem ao próximo. Essa família me marcou muito, pois era muito bonita e me ensinou que lá eles não veem vantagem em tirar vantagem às custas dos outros. A cultura do karma também é muito forte. Eles me ajudaram a perceber isso com muito mais riqueza e sou muito grata por tudo. Me orientaram, indicaram lugares, me deram quarto e comida, me ajudaram a entender o sistema doido de trem (porém muito eficiente) e a ter uma linha de celular local.

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Kala Godha Festival em Mumbai

Não sei qual foi minha melhor experiência em 18 dias lá, mas Mumbai ficou no meu coração. Nunca me senti tão livre e tão independente, acho que foi a coisa da primeira impressão que me marcou. Meus passeios, como toda a viagem, eram planejados com base na minha vontade de ver as coisas. Não me deixei ser orientada por guias ou dicas de must see. Nessa, conheci um museu local incrível, fui a uma festival na rua, vi templos e mais templos e vi a cidade como ela é. Prédios em construção, andei na orla da praia, visitei ilhas, fui perseguida por uma vaca e tirei fotos com crianças. Atenção 1: qualquer turista vira atração e eles não têm vergonha em pedir para tirar foto com você – cuidado, pode ser abusivo, precisa saber enxergar a malícia. Atenção 2: as vacas não são tão respeitadas assim; quando viram a vaca me seguindo, os locais a empurraram e espantaram, pois eu fiquei com medo de ofender alguma cultura.

No final da minha estadia, fizeram uma festa com muito álcool (o forte deles é o rum Old Monk, muito bom por sinal) e me deixaram já com saudade. Todos são incríveis, com visões muito interessantes de mundo. Eventualmente, introduzi MC Bin Laden e Tati Zaqui e foi um sucesso.

Segunda parada: Pune, de trem. A viagem de trem pela Índia é uma experiência incrível, só não pode ter muita frescura. A acomodação é bem simples, mas o chai gratuito é o melhor que você vai tomar na vida. Lá minha anfitriã foi uma colombiana que estava fazendo intercâmbio. América latina, aquela coisa. Nos conectamos instantaneamente. Ela me levou num bar de salsa (!), onde tomei uma caipirinha (!!!) e quase chorei que isso existia (estava horrível, mas valeu a tentativa).

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Festival de música em Pune

O próximo destino seria Goa, mas descobri que o anfitrião oferecia a própria cama (com ele junto, claro) como estadia. Me senti muito desconfortável e descobri que homens indianos têm uma tara meio que por qualquer gringa. Não me senti segura, nem cheguei a ir.

Fui direto para uma viagem de 20h de trem para Bangalore, casa de Shonali, uma mulher incrível. Divorciada, cuidava do filho adolescente num apartamento que parecia uma mansão até para padrões de classe A do Brasil. Tive uma suíte só pra mim, um luxo para poucos mochileiros, comida deliciosa à vontade. Ela me apresentou seu novo namorado, me levou para um típico brunch indiano e me deixou tão livre que o namorado dela acabou me dando um baita beck. Sorte a nossa.

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Paisagem durante a viagem de 20h no trem

Em Chennai, casa de Dimpy. Empoderadíssima também, decidida, não quer casar, não quer depender de ninguém, faz tudo sozinha ou com ajuda do primo. Mal tem serviçal (sim, meio que todos têm um serviçal) e dirige a moto pra todo lugar. Fun fact: lá o capacete não é obrigatório para o passageiro, então fui eu, minhas bagagens e a adrenalina no trânsito indiano (que é tudo isso, sim). Lá provei a primeira coisa que detestei: o Lassi de Chennai, bebida que mistura iogurte azedo, água, COENTRO, GELO E SAL. Foi difícil, mas consegui tomar tudo.

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Estação de trem do terminal de Chennai

O espírito aventureiro e falta de planejamento trazem alguns infortúnios e não consegui fazer o leste indiano – Agra e Taj Mahal – mas não me arrependo. Segui para o último destino: Delhi, a maior cidade, maior caos que vi e o maior perigo. Como a cidade é grande, as pessoas podem ser mais hostis. Nem achei uma mulher ou família para me abrigar, então fiquei num hostel (muito bom por sinal) em Old Delhi, parte não tao bonita da cidade, porém com seu charme.

Delhi foi uma aventura. Pela primeira vez me senti ameaçada por ser mulher. No mercado, senti pegadas na minha bunda. Um absurdo que notei ser bem normal. Os homens sentem essa liberdade de sair por aí encostando em bunda de mulher alheia. Eles são rápidos também. Não dá pra ver em meio à multidão quem foi o infeliz.

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Lotus Temple e Red Fort em Delhi

No hostel fiz amigos de lugares diferentes e todos os dias tínhamos algo programado. Saímos pra baladinha, nos embebedamos, vimos a high society indiana toda ocidentalizada também bebendo e quebrando todo conceito de indianos que eu tinha na cabeça (quanta inocência).

Minha maior imprudência foi pedir um Uber e, ao conversar com o motorista, ele gostou de mim e decidiu que ia me levar pra ver a cidade dele. Eu topei, sim. No final, ele me comprou uma rosa (!) e me chamou pra beber umas (enquanto dirigia). Achei melhor não. Corri um perigo de leve ficando umas 6h no carro dele, mas valeu. A viagem toda deu uns 60 reais (sim, 6h no Uber X).

Concluída a viagem, tirei várias reflexões. A primeira foi que não há muito perigo em viajar sozinha pra lá. Não que não seja perigoso, mas não é mais do que estamos acostumadas. Na verdade, me senti mais segura andando sozinha com celular à mostra e regata lá. Essa é outra coisa: a vestimenta não é tão rígida. Me preocupei em me cobrir com lenços, mas, dependendo do lugar, nem precisa. Lógico que não é bom sair de minissaia, mas lenço, regata e calça estão de bom tamanho. Nada deve ser um impeditivo pras mulheres se sentirem desencorajadas. É um lugar seguro e lindo (pelo menos pelo meu roteiro). Mas, como em todo lugar, tenha sempre um olho nas costas.

A Índia também é um lugar bem barato. Lógico que as pessoas percebem que por você ser turista tem mais dinheiro e tentam cobrar mais caro. E o mais caro, de vez em quando, são centavos na nossa moeda. Não acho que valha a briga e a dor de cabeça ficar pechinchando. Até porque, poucos dão o braço a torcer. Fiz pouquíssimas compras por estar de mochila, mas tive que resistir ao mercado de temperos e flores. São muitas cores e muitos cheiros juntos. Bem encantador.

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Mercado de flores em Delhi

No entanto, a Índia não é para todos. Muitas pessoas que conheci detestaram. Talvez porque quando pensamos em viajar, pensamos em um lugar “melhor” (por melhor, entende-se mais rico, fino, chique, blá). E não é. A Índia é suja, é movimentada, caótica, fedida, barulhenta e marrom sempre. Eu vi beleza. Eu acho que países com muita gente têm essa beleza e como eles se adequam ao seu 1 bilhão de habitantes é mágico pra mim. Enfim, não vá se não quer isso tudo. Muita gente quis ainda assim e se arrependeu de ter ido. Por isso, recomendo às pessoas que conheço.

Mais dicas:

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Big Bull Temple em Bangalore

– O serviço de telefonia lá é incrivelmente barato. Vale muito a pena conseguiu um chip pré-pago (atenção que o serviço pode mudar de uma província para outra).
– Pesquise muito bem sobre os trens. São ótimos e baratos, mas o sistema pode ser confuso. Peça ajuda a um indiano, se possível.
– Tudo é muito barato. Acho que não gastei 300 dólares em em 18 dias de viagem (tirando passagens).
– Conselho-clichê: leve seu papel higiênico, pois nem todo lugar tem. Eu levei um rolo e foi suficiente (os shoppings normalmente têm, caso haja emergência).
– Os restaurantes hoje são acostumados com pedidos de turistas. Faça aquela cara de turista e fale para não botarem muita pimenta que você estará seguro. E 50% dos restaurantes lá são vegetarianos. Um paraíso.
– Beba Old Monk. Veja um filme de Bollywood no cinema. E, se puder, vá a um casamento.
– Baladas costumam fecham entre 23h-1h. Ou seja, vá cedo.
– Os monumentos podem te decepcionar pela má conservação.
– Melhor época: fevereiro (fui em fev/2016). Não é muito quente, mas ainda é bastante, e não tem enchente.
– Grave bem as localizações por conta da falta de sinalização/ pavimentação/ indicação nas ruas.
– O inglês é uma língua universal. É quase impossível encontrar alguém que não entenda numa cidade grande. Mas treine o sotaque (que não é exagerado como nos é ensinado, mas é um tanto desafiador).”

Texto: Leticia Terumi Kita
Fotos: Arquivo Pessoal

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Me escreve no mariana@marianaviaja.com

 

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