“A pergunta que eu mais ouvia era “Por que logo a Índia?”. “Por que não?”, respondia quase sempre. Minha essência questionadora não me deixava reagir de outra forma. Eu estava em crise. Aos 27 anos, estava em um relacionamento por pena, tinha perdido o emprego e a vontade de seguir naquela carreira, infeliz na cidade em que morava, infeliz com a vida que levava…
Em Novembro de 2015 eu pisava em Bangalore, sul da Índia, totalmente sozinha. Escolhi a cidade por sua fama de Vale do Silício Indiana. É conhecida no mundo inteiro por sua vocação tecnológica e empreendedora: abriga milhares de start-ups de alta-tecnologia e telecomunicações e atrai milhões de imigrantes anualmente, indianos e expatriados. Tudo isso traz alguns problemas, considerando que Bangalore é a terceira cidade mais populosa no segundo país mais populoso do mundo (são quase 9 milhões de habitantes em Bangalore, cujo território é menos que a metade da cidade de São Paulo). A poluição do ar, visual e sonora assusta, o trânsito é inexplicável e as disparidades sócio-econômicas causam revolta em qualquer turista.
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Mesmo assim, passei semanas encantada, amando tudo o que via, ouvia e sentia. Em especial a comida. Como eu havia vivido 27 anos da minha vida sem provar um lemon rice ou um veg curry? As pessoas, às vezes assustadas, mas quase sempre gentis e solícitas, me olhavam nas ruas como se eu tivesse vindo de outro planeta.
Foi estranho perceber que as pessoas nunca tinham ouvido falar do Brasil, ou já tinham mas achavam que era próximo à Itália, quando nós aqui dedicamos até novela das 21 àquela cultura. Era nítido que poucos ali sabiam da extensão do mundo lá fora. Isso cria uma barreira muito grande entre o nós e o eles, dividindo as pessoas em três grandes grupos: as que tinham medo de mim por eu ser um elemento desconhecido; as que me tomavam como objeto de estudo antropológico e me olhavam e analisavam com rigor científico; e as que se aproximavam por interesse, já que ser amigo de um estrangeiro lhes confere alto status. Tinha a impressão que era mais difícil para os locais se adaptarem à minha presença do que eu me adaptar à cultura deles.
A medida que fui me adaptando, o encantamento inicial foi sumindo. Sentia medo por andar sozinha nas ruas? Sim, claro. Sou mulher e, infelizmente, lugar nenhum é um lugar seguro para mim. As mulheres na Índia ainda são muito subjugadas e a luta está apenas começando, e isso nas grandes metrópolis. Não tenho nem propriedade para falar do que ocorre no interior e regiões menos desenvolvidas, em que o acesso à educação é muito restrito e o casamento infantil é corriqueiro.
Tive reservas em hotéis negadas algumas vezes, por exemplo, pois alguns não aceitam mulheres solteiras em suas instalações. A mulher ainda é tratada como mercadoria e vendida ao marido desconhecido e arranjado pelos pais, sob o pretexto de “dote”. Por outro lado, há um certo fetiche com mulheres européias e americanas (e aqui me incluo por me referir ao continente americano): como os homens indianos reconhecem que a cultura ocidental é consideravelmente mais aberta e liberal que a deles, entendem por isso que somos “promíscuas” e que realizaremos todos os desejos “profanos” que eles não poderiam realizar com as castas mulheres indianas, produtos exclusivos para procriação.
Mesmo assim, não posso dizer que tenha passado por uma situação em que sentisse que minha vida estivesse em perigo. Situações desconfortáveis, desrespeitosas e asquerosas havia todos os dias. Algumas conhecidas foram assediadas sexualmente e não puderam fazer nada a respeito pois crimes sexuais são ignorados pelas autoridades e ficam impunes. Por via das dúvidas, eu mantinha uma tesoura na bolsa, caso precisasse me defender. Tive sorte. Nunca precisei usar, mas recomendaria a qualquer mulher viajando pela Índia que levasse consigo um tipo de arma, que seja um spray de pimenta, e que não confiasse em ninguém. Pensando bem, recomendaria isso a qualquer mulher viajando por qualquer lugar.
De forma alguma diria que a experiência foi ruim ou negativa. Viajei sozinha, dormi em trem, acampei, andei sozinha de noite, conheci pessoas incríveis e acolhedoras, fiz yoga em templo hindu, me perdi, bebi até não lembrar de nada no dia seguinte, tomei banho no oceano índico, me apaixonei, revi conceitos, dormi no deserto, ri até doer a barriga, quase fui carregada por enchentes, vi o pôr do sol mais lindo da vida, fiz retiro de silêncio e curso de meditação, chorei de raiva, andei a camelo, aprendi, cresci. Faria tudo de novo sem pensar meia vez.
Uma viagem sozinha te força a olhar mais pra si e te traz uma nova perspectiva sobre quem você é e quem você deseja ser. Te faz refletir sobre o que você gostaria de deixar pro mundo e como você gostaria de impactar as pessoas que passam por você – como você quer ser lembrado?
A própria relação com o desconhecido e como você supera os obstáculos que essa experiência te proporciona faz com que você conheça características suas que você nem imaginava que existiam. E pras nós mulheres, levadas muitas vezes a acreditar que temos limitações e que não nascemos pra certas atividades, se faz ainda mais iluminador. Viajar sozinha enquanto mulher é empoderamento 24/7, é afirmar pra si e pra sociedade inteira que sim, nós podemos!
Além de Bangalore, pude conhecer Delhi, Jodhpur e Jaisalmer no Rajastão, Gokarna e Hampi em Karnataka, Munnar, Allepey e Varkala em Kerala e Mumbai. Tirei umas férias antes de voltar pro Brasil e fiquei duas semanas no Sri Lanka. Queria ter tido mais tempo para viajar, mas como fazia um intercâmbio profissional e trabalhava seis dias na semana, tinha pouco tempo livre para lazer.
Desde Outubro de 2016 estou de volta ao Brasil e ainda tentando me adaptar à vida aqui. Uma coisa é certa e comum a todos os intercambistas que conheci durante minha estada na India: viajar é viciante. A vontade de fazer tudo de novo é incontrolável, seus gostos e perspectivas já não são os mesmos e até o programa mais monótono lá fora soa mais interessante do que o programa mais divertido aqui dentro.
Um conselho que eu daria a mulheres pensando em viajar sozinhas é: saiba que sua vida não será a mesma, é impossível voltar a mesma pessoa que você era antes de embarcar nesse avião/ônibus ou qualquer meio de transporte que te leve ao novo. Tenha cuidado e saiba se defender do mundo, mas não deixe que o medo te impeça de desbravar o desconhecido.”
Texto: Juliana Pavão
Fotos: Arquivo Pessoal
Já viajou sozinha e quer ver seu relato publicado aqui?
Me escreve no mariana@marianaviaja.com