Sobre narrativas criadas para despertar medos e outros devaneios matinais

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Foto: Imagem de wayhomestudio no Freepik

Abrir o Instagram ao acordar, ainda na cama é um hábito que quero tentar deixar de lado. Porque é assim que, de repente, antes mesmo de lavar o rosto, já me vejo submersa em sentimentos despertados por algumas publicações. Seria muito mais saudável fazer isso apenas depois do café da manhã, com o estômago cheio e menos potencial raivoso, talvez eu reagisse diferente. Ou talvez não saísse um texto, então pode ser que não seja tão ruim assim.

Digito enquanto tomo meu café – café refeição, não a bebida. Digito enquanto tomo minha caneca de leite desnatado com achocolatado de cacau e alfarroba zero açúcar. Na outra mão, uma torrada integral com requeijão. E vou alternando o celular entre uma e outra, na ânsia de desembaraçar os pensamentos matinais por meio da escrita.

Há quem diga que eu poderia fazer isso praticando alguma atividade física, mas minha serotonina ou endorfina ou seja lá qual for o hormônio que, dizem, os esportes liberam, em mim se manifestam melhor quando estou escrevendo. Juro. Se valesse como cardio eu tava feita!

Mas voltando ao assunto que me levou a essa escrita matinal… Já comentei algumas vezes, falando ou por escrito, que comecei a escrever sobre viajar sozinha porque as notícias eram todas sobre perigos e tragédias – o que de fato existe, mas sempre ganha um foco maior e, pior, um foco generalizado.

Sem querer ser negacionista ou tapar o sol com a peneira, não é isso. Mas notícias ruins sempre chegam em avalanche. Um caso ruim (e não que tenha de ser desmerecido, pelo contrário) vira logo “viajar sozinha é perigoso” ou “país x é perigoso”. Mas e as notícias boas? E as mulheres que viajaram e correu tudo bem? Se a gente não se fortalecer, se incentivar, a gente não vive.

Ciente de cuidados, claro, e até de algumas privações. Não dá para fazer tudo. Mas também não é que não se deva fazer nada.

Quantas vezes já li que viajar sozinha no Brasil é perigoso! Mas no Brasil onde exatamente? Uma cidade de médio porte para pegar praia e comer em um restaurante legal ou andar sozinha de noite no Rio ou em São Paulo?

Essa generalização sequer faz sentido (como nenhuma generalização, aliás). Nem mesmo sobre o Rio ou São Paulo, porque, apesar de todos os pesares, dá para fazer uma viagem com bons passeios em segurança. Mas o que vai sendo repetido à exaustão, meio que vira verdade. Na dúvida, melhor ter medo. Melhor não ir.

Por essas e outras eu nem falo de “perrengues” e tenho um bode tremendo de quem conta qualquer imprevisto como perrengue ou qualquer perrengue como história engraçada. “Ai gente porque vocês não acreditam o perrengueeee pra subir na Torre Eiffel, horas de fila”. Como se fila em lugares turísticos não fossem comuns.

Ou ainda frases do tipo “viagem boa tem que ter perrengue” ou “quem não passa perrengue não tem história para contar”. Não, gente! Viagem boa tem que ser tranquila, tem que dar certo, tem que contornar os imprevistos caso aconteçam e voltar feliz.

Mas perrengue dá ibope. Engaja. Por parte de quem consome, um desejo sádico de ver o outro “se ferrar”, de levantar a plaquinha da superioridade para dizer que não faria daquela forma, que não passaria por aquilo. Por parte de quem mostra, um desejo egocêntrico de colocar cada situação como um acontecimento. Fora que hoje, ne internet, nas redes sociais, falar mal de um lugar repercute muito mais do que falar bem. O mundo está ao contrário e eu reparei sim, viu, Nando Reis!

Eu às vezes me questiono até se os produtores de conteúdo de viagem querem mesmo que as pessoas viajem ou querem apenas se mostrar diferenciados por viajarem. Vira e mexe vejo algo e me questiono qual é o objetivo da pessoa ao postar aquilo. Mais ainda quando há desdobramentos.

Tudo isso porque ao acordar, antes de me levantar da cama, eu abri o Instagram e vi uma “notícia” em um site sobre uma mulher que viaja sozinha apontando países mais inseguros. Cliquei. Como profissional de comunicação já fiquei irritada porque acho muito complicado esse tipo de conteúdo que é apenas replicando uma postagem que viralizou ou nem isso, mas que teve algum alcance. Não tem entrevista, contexto. E é isso o que leva a essa forçação de barra para fazer conteúdo que gere polêmica, de propósito. Papo pra outra hora.

Ali, ainda deitada, li que a mulher em questão saiu com um homem em Paris e ele queria “algo mais”. Péssimo, sem dúvidas. Mas isso faz com que Paris seja uma cidade insegura? O que é experiência pessoal e o que é fato? A moça postou um relato (que a meu ver nem precisava) e o site transformou em “notícia” com um tom ainda mais desnecessário.

Em outros trechos da transcrição do que ela cita no vídeo, diz que nunca se deparou com nada grave em nenhum dos lugares mencionados. E que em um deles apenas “sentiu” uma desaprovação. E eu incrédula porque isso sequer devia ser conteúdo – nem dela e nem do site que repercutiu depois. Mas sobra ânsia por engajamento e falta responsabilidade.

Tomar uma experiência pessoal como base é muito complicado, inclusive para experiências boas e falo isso sempre que compartilho sobre viajar sozinha. É mais complicado ainda para as ruins. Pânico generalizado. Tal país é perigoso. Os homens de determinado destino assediam. A vida não é cartesiana desse jeito. E desinformação não é só fake news. São detalhes que vão transformando narrativas.

Não sei exatamente onde quero chegar com todos esses pensamentos porque há tanto aí para refletir – a forma como muitos criam conteúdo, a forma como muitos consomem conteúdo, a forma como a internet transformou o que é ou não informação, a necessidade de sobrevivência dos sites noticiosos.

Mas sei que o medo é ferramenta de controle. Uma vez instalado, não é preciso que nada aconteça. Pensar que é perigoso já paralisa, já impede o primeiro passo, já limita. E muita gente talvez nem se dê conta de quanto está reforçando isso.

E assim vai se gerando uma ansiedade que não é necessariamente culpa das redes, como alguns dizem, ou do excesso de tempo de tela. Nem só das pessoas ou dos sentimentos e comportamentos individuais. É mais profundo, mais complexo e é preciso estar atenta para não se perder nesse labirinto. É uma armadilha.

Muitas questões e ainda nem eram 7h.

 

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