O medo não é de viajar sozinha, é de ser mulher

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O medo de viajar sozinha é um assunto que vira e mexe aparece quando compartilho meus relatos, seja no blog, nas redes sociais ou nas minhas conversas… Para muita gente, este é o grande empecilho que impede de viajar na própria companhia. Desde os medos mais simples, se é que se pode chamar assim, como se sentir deslocada/solitária, até os medos concretos de assédio, abuso e estupro.

Me perguntam como lidar com esse medo, como superar. Logo eu, que sempre fui adepta do “vai com medo mesmo”. Acho que não sou a pessoa mais indicada para dizer como é que se cria coragem. E às vezes depois que passa eu mesma olho para trás com um quê de incredulidade por ter feito algumas viagens – não que elas tenham representado algum perigo iminente, mas pelo simples fato de ter ido ou do que poderia ter acontecido. O medo ronda o tempo todo, até depois!

Me dizem, também, que sou corajosa. Costumo dizer que esse adjetivo me deixa mais tensa que propriamente feliz, porque só me faz ver o quanto o mundo é hostil. Aliás, o quanto o mundo é hostil com as mulheres. Já devo ter falado sobre isso em outros textos por aqui, mas é inevitável. Porque um homem viajando sozinho (ou fazendo qualquer coisa sozinho) é só um homem fazendo. Verbo intransitivo, quase. Mas uma mulher ooohhhh nossa mas como ela é corajosa!

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Sim, a mulher que, a despeito desse mundo machista e horroroso no qual vivemos, sai por aí, está mesmo rompendo algumas barreiras.

Acontece que esse “por aí” não precisa ser longe. Não precisa ser do outro lado do mundo ou em um estado diferente e nem mesmo em outra cidade, sequer em outro bairro. Sair de casa, sendo mulher, já é, por si só um ato de coragem. Ou, pelo menos, uma situação que faz a gente guardar os medos no bolso e ir assim mesmo. Isso sem contar as que nem mesmo dentro de casa podem se sentir protegidas. Não é nem nunca foi sobre viagens. O buraco é sempre muito mais embaixo.

Por que eu estou falando tudo isso? Porque ontem uma sentença judicial absolveu um estuprador com o argumento de que o estupro não teria sido intencional. Porque não faz muitos dias um grande clube de futebol contratou um famoso atacante condenado por estupro em outro país. Porque outros clubes de futebol, não tão grandes, contrataram ou quiseram contratar um jogador que matou a mãe do próprio filho e sumiu com o corpo. Porque um dos principais realities shows da televisão tem como participante convidado um homem que agrediu a namorada. O benefício da dúvida e a opção da segunda chance sempre presentes quando se trata de crimes cometidos por homens. “Não podemos julgar, ele pode ter mudado”.

Mas julgar a mulher pode, parece. Vagabunda. Piranha. Puta. Mas também com essa saia. Quem mandou beber tanto? Tem que se dar ao respeito. Pelas fotos dá para ver que boa coisa não é. Menina não pode se comportar assim. Tava pedindo. Na hora com certeza foi bom. Rótulos que nunca saem, que acompanham cada uma para sempre.

E aqui estamos, em 2020, a menos de dois meses de 2021, tendo de gritar, mais uma vez, que estupro é crime, que a culpa nunca é da vítima e que estuprar sem intenção não existe!

O que existe é um sistema machista que quer a qualquer custo (e muitas vezes consegue) nos humilhar e nos matar. O que existe é uma cultura do estupro que faz com que homens criminosos sejam absolvidos. O que existe é o tempo todo a tentativa de nos descredibilizar, de mostrar que somos loucas e até mesmo as verdadeiras culpadas. Nenhuma de nós está segura!

Porque a violência não acontece apenas na hora do ato, ela se repete depois nos julgamentos, nas ofensas e até nas sentenças judiciais. O medo não é “só” do estupro. É de todas as consequências que isso tem na vida de uma mulher – diga-se de passagem, muito mais do que na vida de um homem, mesmo que com o crime comprovado.

É como se uma mulher estuprada tivesse muitos mais motivos para ter vergonha que um homem estuprador. E ainda dizem que basta denunciar.

Quantas vezes já vi gente tentando explicar que não existiria estupro se… (insira aqui qualquer frase referente ao comportamento feminino ou à educação que as meninas deviam receber). Mas só existe um complemento correto para esta frase: não existiria estupro se não houvesse estuprador.

Em quem a gente vai confiar? Como a gente vai saber? Mesmo os homens que posam de indignados nas redes sociais e que eu até acredito que haja mesmo alguma indignação quando se trata de casos mais conhecidos, na mesa de bar não corrigem as “piadinhas” machistas dos amigos e contam vantagem das mulheres que já “pegaram”.

E tudo isso acaba levando ao medo de viajar sozinha, de estar em um lugar desconhecido, de não saber para onde ou para quem correr. 

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Sempre que vejo algum caso noticiado penso que podia ser comigo. Penso em mim e em tantas viajando sozinhas por aí. Não necessariamente viajando. Porque tudo isso pode acontecer (e acontece) com inúmeras mulheres nas ruas, nos transportes públicos, nos ambientes de trabalho, nas festas, nos quatro cantos do mundo.

É claro que existem locais de maior risco, situações de maior vulnerabilidade, mas não é uma exclusividade das viagens. É um medo que temos todo dia. Que, na verdade, é o medo de ser mulher! Como então seguir encorajando outras mulheres, como ensinar às meninas desde cedo que elas podem tudo, sabendo que o mundo é assim?

Eu sei que a gente precisa continuar gritando e tentando fazer com que nos ouçam. Eu sei que o feminismo é cada vez mais necessário. Eu sei que a gente precisa ocupar espaços, a gente precisa escolher representantes que realmente nos representem em um país (um mundo) regido por leis feitas por homens e para homens. Eu sei que a gente precisa continuar sendo resistência. Mas, sinceramente, eu tô exausta!

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