Copa do Mundo de Futebol Feminino: de esporte proibido por lei à transmissão em rede nacional

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Eu adoro futebol e estou ansiosa para ver como será a Copa do Mundo de Futebol Feminino desse ano. Nas últimas Olimpíadas, em 2016, fui a um jogo das meninas e foi incrível! Mas lembro que quando comecei a acompanhar o esporte, lá pela época da Copa do Mundo de 94, ainda se falava que isso não era coisa de mulher. Ainda se fala, né?

E olha que meu interesse nem era de jogar, apenas torcer e acompanhar os times masculinos. Numa era pré-internet, eu não tinha nenhuma informação sobre mulheres nesse meio, era como se mulher não gostasse mesmo de futebol e ponto – a menos que fosse para apreciar as pernas dos jogadores ou colecionar figurinhas dos bonitos (meu preferido era o Leonardo, lateral esquerdo do São Paulo e do Milan).

Mais ou menos nessa mesma época, acho que depois da Copa, lembro da Milene Domingues fazendo sucesso como “rainha das embaixadinhas”. Era algo superdiferente. Aos poucos alguma coisa começou a aparecer na mídia, mas sempre muito devagar. Tanto é que estamos em 2019 e só agora, pela primeira vez, a Copa do Mundo Feminina de Futebol vai ter jogos transmitidos pela TV aberta em rede nacional!

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Nesse meio tempo veio Marta, um dos nomes mais importantes nessa história toda. Mais que se tornar uma referência para meninas que gostam de jogar bola, a trajetória dela foi e vem sendo uma contribuição imensa para o futebol feminino, ajudando a quebrar barreiras e a mudar a forma como o esporte é visto. Hoje ela é uma das quatro embaixadoras da ONU em defesa da igualdade de gênero.

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Trecho de uma carta escrito pela Marta de hoje à Marta criança (Reprodução/Instagram @martavsilva10)

Sem falar nos recordes: Marta tem mais gols que Pelé. É a maior artilheira da Copa do Mundo Feminina e pode se tornar a maior de todas as copas, ultrapassando o alemão Klose, caso faça dois gols na disputa deste ano. E já ganhou por seis vezes o prêmio de melhor do mundo.

Ela não é a única a fazer história. Na seleção que disputa essa Copa do Mundo tem Formiga, em sua 7ª participação, recorde entre mulheres e homens! Outro grande nome é Sissi, que já pendurou as chuteiras e não chegou a ter o reconhecimento que merecia. Ela participou seleção desde a da 1ª formação, em 1988, até o ano 2000.

Como ela mesma disse, segundo matéria do ótimo site Dibradoras, fez parte de uma geração que comeu o pão que o diabo amassou. Em 1999 foi artilheira da Copa e cumpriu uma promessa que tinha feito caso o Brasil tivesse um bom desempenho (ficou em 3º lugar): raspar a cabeça. O preconceito foi tanto que, dois anos depois, em 2001 (olha só, já estamos falando de século XXI), uma nova regra no regulamento brasileiro proibiu mulheres de cabelos curtos, com o argumento de “enaltecer a beleza das jogadoras para atrair o público masculino”.

Aliás, essa discussão sobre a “falta de feminilidade” das jogadoras de futebol, associada à orientação sexual, é um ponto que sempre foi colocado de forma muito preconceituosa e sempre me incomodou. Primeiro porque uma coisa não tem nada a ver com a outra – ninguém é mais mulher ou menos mulher porque tem cabelo comprido, usa maquiagem, etc. Segundo que se for mesmo lésbica, e daí? Terceiro que não é concurso de beleza.

E além de ser algo contraditório, porque a mulher “mais feminina” acaba sendo vista como fresca e desqualificada no meio esportivo; já a mulher que não performa feminilidade, mesmo jogando bem não é valorizada por ser “feia” e “sapatão”. A sexualidade sempre colocada na berlinda como forma de deboche. Isso sem falar que o critério estético nunca foi apontado dessa forma nos esportes masculinos. Por mais que haja sempre os bonitões fazendo sucesso (o que é uma escolha subjetiva também), a capacidade deles em campo não costuma ser questionada com base nisso.

Fato é que mesmo com tando avanço e tantos estereótipos desconstruídos, a sociedade ainda olha torto para mulheres que jogam futebol. Alguns jogos nacionais já são exibidos na televisão, ainda que com pouca adesão, mas é um começo. Há movimentos de mulheres torcedoras, ocupando seus (nossos) espaços. Mas meninas, em geral, ainda não ganham bola nem camisas de times. E tem a ver com o que eu falo nos meus textos sobre viajar sozinha, né – pra quem ainda não entendeu a conexão entre os temas: é tudo sobre os direitos das mulheres e sobre funções que determinam se cabem ou não a nós, o que nem deveria mais existir.

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Até mesmo as mulheres que não jogam, mas gostam de futebol, passam por situações absurdas. É só a gente fazer um comentário que logo aparece alguém (um homem) desafiando a responder o que é impedimento ou qual o nome do goleiro que fez uma defesa contra o time tal ou a escalação completa do seu time em 1985. Coisas que ninguém pergunta a outro homem, porque quando um diz que gosta de futebol, tá tudo certo. Mas com a gente é essa insistência, como se fosse necessário provar que entende ou como se precisasse saber de tudo para gostar e torcer.

Isso é um reflexo histórico do machismo, tão enraizado e naturalizado que muitas vezes passa sem a gente ver. Curiosidade: redigi esse texto no Word e ele marca sempre a palavra artilheira como errada, me sugerindo a correção para artilheiro. Ainda temos um longo caminho pela frente… mas é bom, também, olhar pra trás, porque isso ajuda a ver que já avançamos.

História do futebol feminino no Brasil

Quando as primeiras mulheres começaram a praticar o esporte no Brasil, lá pelos anos de 1908 e 1909, as partidas eram com equipes mistas. Só em 1921 houve uma partida oficial com um time só de mulheres, em São Paulo.

O preconceito era tão grande que poucos anos depois, na década de 40, foi proibido que mulheres jogassem futebol! A ideia partiu de famílias conservadoras (sempre elas) que achavam o esporte muito bruto e “incompatível com a natureza feminina”, e acabou se tornando um decreto-lei. Além do futebol, as lutas em geral, halterofilismo, pólo, também foram proibidos. Isso durou até 1979, quando a lei foi revogada e começaram a surgir equipes femininas.

Em 1988 uma seleção foi convocada pela CBF pela primeira vez, para a disputa da Women’s Cup of Spain. O Brasil venceu. O futebol feminino foi crescendo, a Fifa passou a organizar eventos e a 1ª Copa do Mundo aconteceu em 1991, na China. Um pouco mais tarde, em 1996, o esporte foi incluído como modalidade nas Olimpíadas de Atlanta.

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Eu aplaudo cada uma das atletas que tanto fizeram para promover o futebol feminino! Aplaudo cada uma das convocadas para a Copa Feminina 2019 e mesmo as que não chegaram à seleção, mas fizeram e estão fazendo seus trabalhos pelos campos do Brasil e do mundo. Não sei a história de vida de quase nenhuma, mas fico imaginando o quanto devem ter sofrido (e ainda devem sofrer).

Escrevi sobre isso no Twitter e uma seguidora, Emelin, contou que jogou pelo Guarani de Campinas na década de 90 e sequer tinham salário, apenas um lanche – pãozinho com presunto e queijo e um copo do refri mais barato! Acho que a realidade da maioria Brasil afora é essa. Mesmo as que chegaram ao sucesso e à seleção, por muito tempo foram desvalorizadas, ainda ganham infinitamente menos que os homens, têm muito menos visibilidade…

No jogo que comentei lá no começo, nas Olimpíadas de 2016, foi lindo poder ver de perto a raça com que elas se dão em campo. A seleção masculina vinha em uma fase ruim e a feminina numa fase ótima. Teve um caso famoso de um garoto que riscou o nome Neymar na camisa e escreveu de caneta o nome Marta.

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Foto: Huffington Post/ Reprodução Instagram

Foi uma repercussão grande e muito simbólica, já que não há camisas com nomes de jogadoras e, mesmo as de jogadores, nem sempre são feitas em modelos femininos para mulheres torcedoras. Isso levantou várias discussões. E acho que o fato de a seleção feminina ter jogado bem em um evento dentro do nosso país foi um passo importante também, principalmente em à admiração do público.

O jogo que fui foi um Brasil x Austrália, no Mineirão, em Belo Horizonte. Mais que o futebol, a forma como interagiam com a torcida, a alegria de estarem ali, dava pra gente sentir. Mesmo em campo sendo um jogo muito duro. Disputa de pênaltis, Marta errou. Logo ela!

Mas, pra mim, parte importante do lutar é saber se comportar na derrota (ou na possibilidade dela). Marta errar um pênalti decisivo é muito mais digna do que Thiago Silva que, na Copa de 2014, tão logo acabou a prorrogação contra o Chile saiu chorando e fugiu da responsabilidade. E no fim a seleção feminina acabou ganhando – depois foi eliminada na fase seguinte, mas a simpatia pelo time foi conquistada e isso ninguém tira!

Sobre a Copa do Mundo Feminina de Futebol

Agora vem a Copa do Mundo de Futebol Feminino. A competição de futebol feminino mais importante internacionalmente, que tem quase 30 anos, mas só recentemente começou a ter um pouco mais de reconhecimento. Pela 1ª vez na história um canal de TV aberta irá exibir os jogos do Brasil – o canal a cabo SporTV transmitirá todo o torneio e a Globo transmitirá os jogos da seleção brasileira. É inacreditável que tenha demorado tanto tempo para que isso acontecesse, logo no chamado “país do futebol”, mas que bom que aconteceu. Fico feliz!

Outro ponto interessante, que vi também no Dibradoras, pelo Twitter: em 2015 a seleção feminina foi convocada sem coletiva de imprensa, só uma lista no site. Este ano o auditório da CBF estava lotado, os principais veículos do país estavam acompanhando. “Os holofotes finalmente chegaram ao futebol feminino!”

Ainda assim, o machismo continua presente. Quando não de forma explícita, se mostra em pequenas atitudes ou comentários. O técnico Vadão (aliás, me questiono por que um técnico homem, mas não quero me estender mais no texto), perguntado sobre a diferença de um vestiário feminino e um masculino, respondeu que “é mais difícil acalmar mulheres do que homens”. É de revirar os olhos (e o estômago). Mas sem deixar o ranço bater, porque mais do que nunca é hora de mostrar nossa torcida!

Em 2019 a Copa do Mundo de Futebol Feminino vai contar com 24 seleções. Os jogos serão disputados em 11 cidades da França durante os dias 7 de junho e 7 de julho – minha ideia inicial era só listar isso e falar de dicas de cada lugar, mas fui fazer uma introdução que acabou virando esse texto enorme, então dividi e fiz outro.

Eu espero que o Brasil vá bem, mas, mais que isso, espero que a transmissão na TV seja um começo e tomara que cada vez mais gente assista e prestigie, gerando mais visibilidade para nossas jogadoras e para o esporte, não só na seleção, não só na Copa do Mundo de Futebol Feminino, mas também nos clubes. Que a frase “jogue como uma garota” seja cada vez mais real!

* Foto Principal:Agência Brasil Fotografias [CC BY 2.0], via Wikimedia Commons

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