O que viajar tem a ver com política?

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Dia desses me deparei com uma informação que me deixou impactada: a pesquisa “Eleições e Influência”, realizada pela YouPix, mostrou que mais de 40% dos criadores de conteúdo não consideram educação, saúde, cultura, diversidade e democracia como questões políticas. O percentual talvez seja até maior se pensarmos no público geral.

“Eu falo de viagens, não quero misturar as coisas”. “Eu sigo tal perfil/leio tal blog para ver sobre viagens, não quero saber de política”. São frases comumente ouvidas por aí.

Mas, quem pensa assim, talvez ainda não tenha percebido o quanto algumas coisas estão conectadas. E o quanto viajar tem TUDO a ver com política.

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Afinal, o que viajar tem a ver com política?

Aproveitando que 2022 é um ano eleitoral (no qual escolheremos presidente, governadores, senadores e deputados estaduais e federais) e em dois anos teremos novas eleições (para prefeitos e vereadores), resolvi escrever esse texto.

Listei alguns tópicos sobre viagem e a ligação de cada um deles com as questões que envolvem política. Porque viver é político. Nossa existência é política. E tudo isso aqui passa por decisões políticas, por isso precisamos estar sempre atentos!

Destinos de natureza

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Imagem: David Mark por Pixabay

Praias paradisíacas, mar limpo, parques com muito verde, trilhas na mata, cachoeiras, passeios de barcos em rios, visitas a florestas… Quem gosta de lugares assim, precisa estar ligado na importância de medidas para evitar a destruição e no combate ao aquecimento global.

É preciso que os governantes, sejam municipais, estaduais ou federais, tenham preocupação ambiental, compromisso com projetos de preservação e respeitem os órgãos de fiscalização.

E pensar no planeta como um todo. Não adianta gostar de conhecer lugares com natureza no exterior, mas não ligar para o que querem fazer com a Amazônia – que, a propósito, teve aumento de 56,6% no desmatamento nos últimos três anos, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Lugares históricos

Se esse é o seu tipo de viagem, não dá para votar em quem deprecia ou faz pouco da história, da cultura, da arte. Não dá para concordar com quem não investe ou não respeita os responsáveis por essas áreas.

Porque o patrimônio histórico de um país – sejam sítios arqueológicos, construções antigas, bens tombados e outros – é essencial para manter a memória e a construção da identidade cultural do seu povo. E precisa ser preservado.

Assim como espetáculos artísticos, apresentações culturais e outras manifestações importantes que precisam de investimento e de valorização.

Preços de passagens

No passado, viagens aéreas eram só para quem tinha muito dinheiro. Depois se tornaram mais acessíveis. Pessoas, como eu, que nunca tinham andado de avião, tiveram essa oportunidade. Quantas vezes comprei trechos aéreos mais baratos que ônibus!

Incomodados, os que antes tinham esse “diferencial”, começaram a reclamar que aeroporto estava parecendo rodoviária ou frases mais absurdas como “até porteiro e empregada indo para a Disney”.

Os preços voltaram a subir e ficaram inviáveis para a maioria, mesmo os terrestres. Consequência do aumento no combustível e da falta de ações que poderiam reverter a situação. Ruim para quem viaja, péssimo para quem trabalha com turismo.

Se você não é a favor de passagens caríssimas e acha que viajar deve ser para todos como foi um tempinho atrás, pense nisso.

Exigência (ou não) de visto

O visto é uma permissão formal para entrar em um país. Alguns exigem, outros não. Para brasileiros entrarem nos Estados Unidos, por exemplo, é obrigatório ter o visto. Já na Europa, não há exigência, devido a um tratado que permite livre circulação de brasileiros.

Há, também, determinação de prazo máximo que um turista estrangeiro pode ficar em um país. E, mesmo sem necessidade de visto, ao passar pela imigração a entrada pode ser barrada caso a documentação não esteja correta.

Tudo isso tem a ver com política internacional e diplomacia. Na pandemia, por exemplo, alguns países deixaram de aceitar brasileiros pela questão da vacinação. Mesmo antes da Covid-19, algumas vacinas sempre foram (e seguem sendo) exigidas de turistas, o que mostra a necessidade do respeito à ciência.

Valor da moeda local

Esse tópico faz toda a diferença em uma viagem internacional. Eu já viajei com o dólar a 2 reais – e já esteve até mesmo abaixo disso em algumas épocas. Também já viajei para lugares onde a moeda valia menos que a nossa.

Mas o que vemos ultimamente é a alta do Dólar, que chegou a passar de 5 reais, e do Euro, que passou de 7 reais. Uma desvalorização constante do nosso Real. E impacta não só em viagens, mas também nos preços locais, com aumento da inflação.

Há razões externas e internas que fazem com que essa alta aconteça. E a política econômica de um governo tem sua parcela de responsabilidade. Quando há interesse, é possível tomar medidas que ajudem a conter (ou pelo menos tentem).

Segurança nas cidades

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Imagem: StockSnap por Pixabay

Seja viajando ou no dia a dia, a segurança é fundamental em qualquer cidade. É tão bom estar em lugares onde dá para andar com tranquilidade, sem se preocupar com o celular ou a bolsa ou outras coisas piores, até mesmo sair à noite sem medo.

É importante haver policiamento efetivo e medidas focadas em baixar os índices de criminalidade, mas também investimento em ruas bem iluminadas, espaços públicos bem cuidados, projetos sociais e outros pontos que fazem a diferença na prevenção da violência.

As políticas de segurança pública devem envolver, ainda, programas relacionados a educação, lazer, assistência social, trabalho, moradia e renda, já que as condições de desigualdade socioeconômica também levam ao aumento da violência urbana.

Planejamento urbano

Não há jeito melhor de conhecer um destino do que andando pelos lugares. Por isso é necessário, principalmente nos grandes centros urbanos, que haja calçadas mais largas, ruas bem pavimentadas, espaços arborizados, ciclovias. E bom funcionamento do transporte coletivo, com pontos e vias específicas para embarque e desembarque.

Além, é claro, de acessibilidade, com rampas, sinais sonoros, sinalizações táteis, informações em braile e outras medidas, tanto nos espaços públicos como nos privados (hotéis, restaurantes), que ajudem a tornar as cidades plenamente acessíveis.

Tudo isso é política e passa pelas decisões tomadas pelos governantes. É bom para os turistas e impacta diretamente no bem-estar e na qualidade de vida da população. E não adianta achar o máximo o metrô em outros países, as ciclovias, mas não apoiar medidas semelhantes aqui.

Dinheiro para viajar

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Imagem: Peter Fertig por Pixabay

A crise está grande, os preços estão altos, salário não sobe, o dinheiro mal dá para cobrir as despesas e nunca sobra para uma viagem? Política! É preciso haver políticas públicas que garantam emprego e geração de renda, além de valorização da legislação trabalhista e da educação.

Isso sem falar na questão das desigualdades sociais, no quanto as viagens, mesmo as mais econômicas, ainda são um privilégio de um pequeno grupo.

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Viajar sozinha é um ato político

Dentro do tema específico do qual falo com mais frequência, que é sobre mulheres que viajam sozinhas, entender como um ato político é ainda mais importante.

Em um mundo que pouco ou nada nos incentiva a sair por aí, que não nos encoraja, que não pune quem nos amedronta ou nos ataca, viajar sozinha é um ato de resistência. A cada passo que damos, estamos quebrando tabus e superando desafios.

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O mesmo vale para negros, LGBTQIA+, pessoas gordas, pessoas com deficiência, pessoas idosas. O quanto o mundo é (no caso, não é) aberto e/ou acessível? O quanto é preciso romper com padrões sociais e com outras questões para ocupar lugares que são (ou deveriam ser) um direito?

Ser respeitado é o mínimo que todos merecem. Mas há lugares onde nada disso acontece, pelo contrário. Mesmo em destinos onde legalmente – ou teoricamente – esse respeito existe, na prática ainda há muitas barreiras que precisam ser derrubadas.

A gente até quebra alguns tijolinhos, e seguiremos quebrando. Mas a função maior é do poder público. Não é uma questão individual. E aqui entra a importância da representatividade na política em todas as esfera do poder e o nosso papel em apoiar pessoas que estão realizando trabalhos com esse viés.

Em 2021, o estudo “Democracia Inacabada: um retrato das desigualdades brasileiras”, realizado pela Oxfam Brasil, mostrou que “a reduzida proporção de mulheres, negros e integrantes de extratos inferiores de renda entre políticos eleitos são entraves no combate à desigualdade econômica, que se acentua à medida que as elites decisórias seguem não refletindo as demandas da diversidade de seus representados”.

É claro que só gênero ou só raça ou só orientação sexual não são e nem devem ser definidores de voto. Mas levar tudo isso em consideração e escolher representantes que de fato nos representem é outro ponto muito importante.

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Viajar também é aprender

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Imagem: Mar por Pixabay

Em um outro texto, que fiz em 2018, comentei também sobre pessoas que viajam e parece que não absorvem absolutamente nada. Que mesmo em contato com outras realidades, outras formas de pensar e de viver, que até mesmo gostando do que veem e vivenciam, não se abrem para isso.

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E tem um texto da Fernanda do blog Tá indo pra onde?, que ela chama de manifesto e fala sobre coisas nas quais acredita, e que eu acredito também, e que têm tudo a ver com viagens – e com política.

A importância de conhecer a história para não repetir os erros do passado, a preservação do meio ambiente, a diversidade, o encantamento por culturas diferentes, o valor da educação e da leitura, uma vida em benefício do coletivo, o respeito aos direitos humanos… É fundamental defendermos tudo isso!

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“Mas eu detesto política”

Quem diz que detesta política, talvez de fato ainda não tenha entendido o que é política. Porque, como esses exemplos mostram, tudo passa por decisões políticas, não só as decisões globais ou só as locais, mas até mesmo as nossas próprias decisões. O que a gente come, o que a gente veste, o que a gente estuda/trabalha, onde a gente vai, como a gente vai. A gente vive em um mundo que é político.

E acho importante esclarecer que política é diferente de eleição. Posicionamento político não é apenas partidário. Portanto, não tem ninguém dizendo que é preciso declarar voto (mas, se quiser, pode). Nem que é para votar em X ou em Y. Esse texto não é uma campanha. Mas é preciso entender que são questões interligadas.

É mais ou menos como acontece quando alguém critica quem discute “só por causa de política”, como se política fosse algo totalmente desvinculado de outros setores da vida. Porque não é!

Então não pode mais discordar?

Pode. Deve. A diversidade de opiniões é de extrema importância, assim como o diálogo e os debates. Mas algumas coisas não são questão de opinião. Ninguém desfaz amizade porque a pessoa gosta de um sabor de sorvete diferente do que você gosta ou porque prefere outra cor de blusa. Mas tudo isso muda quando o que está em jogo é a vida, o respeito.

Racismo não é opinião. Homofobia não é opinião. Machismo não é opinião. Etarismo, elitismo, gordofobia, tantos outros exemplos. Não dá para apoiar quem é a favor desse tipo de coisa (ainda que o apoio se dê por outros motivos e, por causa deles, relevar esses pontos).

Já abordamos alguns desses temas
no Podcast Além do Olhar, ouça os episódios sobre:
Gordofobia
Etarismo
Afroturismo
Acessibilidade

A liberdade de expressão deve existir, mas, se a opinião divergente prega a intolerância a um grupo ou a algumas pessoas, se é uma opinião é repleta de discursos de ódio, se incita a violência, não se deve tolerar.

Cabe falar aqui sobre o paradoxo da tolerância, do filósofo austríaco Karl Popper, que questionou até que ponto a sociedade deve ser tolerante com os intolerantes. “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, os tolerantes serão destruídos” – escreveu em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, de 1945.

Voltando à pesquisa que citei no início, a YouPix pontua que “Apesar da maioria não falar sobre questões políticas porque entendem que não faz parte de suas temáticas, é interessante notar que o medo aparece em muitas respostas, pois o debate político anda violento e não se sentem seguros ou seguras para falar disso. E o segundo motivo mais citado tem a ver com desconhecimento do assunto”.

Por isso a principal dica é: informação. A gente precisa se informar sobre o conteúdo que a gente posta, sobre o conteúdo que a gente consome. A gente precisa parar de dar visibilidade para pessoas com as quais a gente não se identifica.

Estou falando de conteúdo de viagens porque é o meu nicho, mas isso vale para criador (e consumidor) de conteúdo de beleza, de moda, de literatura, de gastronomia, de tudo.

Estamos em 2022 e simplesmente não dá mais para tolerar o intolerável. Nem o silêncio. Nem a isenção. Tudo é político. E quem não se posiciona, posicionado está!

Para ler ouvindo:

Foto principal: wirestock – br.freepik.com

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