Espaços caminháveis, mulheres e viagens

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ESPAÇOS CAMINHÁVEIS, MULHERES E VIAGENS

Por que é importante pensar os espaços públicos a partir da perspectiva de gênero?

Assuntos como mobilidade urbana, ocupação de espaços públicos e caminhabilidade estão sendo cada vez mais discutidos e incentivados. Para isso, é importante pensar em alargamento de calçadas, aumento na iluminação, diversificação do uso dos espaços, acessibilidade e outras medidas. É essencial, também, fazer um recorte de gênero.

O termo caminhabilidade é definido como a capacidade do espaço público de permitir o ato de caminhar. Andar pelas cidades proporciona experiências que fazem toda a diferença em uma viagem e no dia a dia. Caminhar sem destino certo, observar a cidade, perceber sua história não oficial…

Mas, ainda que os espaços urbanos pareçam espaços “neutros”, na prática não é exatamente assim. Em todo o mundo, esses espaços sempre foram e ainda são projetados por e para homens, de forma a gerar uma segregação, muitas vezes sem que a gente perceba de forma tão clara, embora a gente sinta!

A (in)segurança das mulheres ao andar pelas ruas

A pesquisa “Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade”, divulgada em outubro de 2021, apontou que 96% das mulheres evitam passar por alguns locais quando estão sozinhas.

Um número alto, que mostra que o gênero ainda é um fator de vulnerabilidade nos deslocamentos urbanos. Isso acaba reduzindo a participação feminina na vida pública, limita as opções de lazer e impede que muitas passem a viajar sozinhas ou mesmo que saiam nas próprias cidades.

É claro que quando se fala em segurança, é algo que afeta a todos os gêneros. Os homens também são vítimas das violências nos espaços urbanos. Mas são violências mais ligadas aos materiais, como roubos, enquanto para as mulheres os perigos vão muito além disso.

Uma mulher, antes de sair de casa, precisa pensar no caminho que vai fazer, no tipo de roupa que vai (ou não) usar, no melhor horário, entre outros fatores que acabam se tornando limitadores. Antes de uma viagem sozinha, precisa avaliar os destinos para saber quais são possíveis.

Em tese, hoje podemos fazer o que quisermos. Na prática, não é bem assim. A violência de gênero restringe a mobilidade. Não somos completamente livres e não seremos enquanto os espaços não nos proporcionarem essa liberdade. E isso não é apenas uma questão de segurança pública!

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Para buscar mudanças nesse sentido, há livros, coletivos femininos, debates sobre a relação dos pedestres com as cidades e outros projetos que discutem a importância da participação feminina e que buscam incluir a mulher nos diagnósticos e nas tomadas de decisões nas cidades – mulheres, há que se frisar, que lutam por uma cidade sem opressões e não aquelas que lutam ao lado dos opressores.

Cidades de mulheres e para as mulheres

O livro “Cidade Feminista – A luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens”, da geógrafa canadense Leslie Kern (Editora Oficina Raquel), fala sobre como essa geografia de exclusão real e material faz com que as mulheres encontrem entraves no ambiente urbano, com situações que reforçam papéis de gênero e subjugam corpos femininos.

“Como mulher, minhas próprias experiências urbanas cotidianas estão profundamente marcadas pelo gênero. Minha identidade de gênero determina como me movo pela cidade, como vivo meus dias, quais opções tenho disponíveis. Meu gênero é algo mais amplo que meu corpo, mas meu corpo é o lugar da minha experiência vivida, ali onde minha identidade, minha história e os espaços que habitei se cruzam, onde tudo isso se mistura e fica escrito na minha pele. Meu corpo é o espaço a partir do qual escrevo. É o espaço, no qual minhas experiências me levam a perguntar coisas como: por que o carrinho de bebê não cabe no bonde? Por que tenho que caminhar um quilômetro a mais para chegar em casa sozinha, já que o atalho é demasiado perigoso? Quem buscaria minha filha na creche, se eu fosse detida na manifestação contra o G20? Essas não são apenas perguntas pessoais, mas questões que vão ao cerne de como e por que as cidades mantêm as mulheres ‘em seu devido lugar’”. 

É por isso que, antes de falar em caminhabilidade, precisamos saber que esses espaços foram e ainda são construídos por uma sociedade patriarcal, além entender fatores sociais que, por muito tempo, impediram a presença das mulheres nas ruas.

O modelo de desenvolvimento urbano no passado era focado na abertura de ruas largas para o fluxo de veículos e de grandes edifícios, o que resultou também em uma segregação, já que a população foi migrando para áreas mais periféricas nas grandes cidades.

Enquanto isso, nas regiões centrais surgiram vias expressas, o número de carros aumentou, a velocidade aumentou – ou não, porque os congestionamentos também aumentaram. E andar a pé foi ficando algo cada vez mais raro (e mais perigoso). A partir disso começaram a surgir também as discussões sobre a necessidade de mudanças.

Mas tudo isso levava em consideração apenas (ou majoritariamente) os homens, pois eram eles que faziam parte das cidades, que se deslocavam de casa para o trabalho e do trabalho para o lazer ou outros afazeres.

Foi só bem mais tarde que a perspectiva de gênero entrou no radar do urbanismo, com projetos de transformação urbana e formas de intervenções nas cidades visando não apenas pensar a caminhabilidade, tratar questões sociais ou reativar a economia local, mas pensando também em como tudo isso pode ser focado nas necessidades e demandas femininas.

Entre os exemplos estão Barcelona, na Espanha, que tem feito creches e outros serviços mais próximos dos locais de trabalho ou moradia, e Viena, na Áustria, que criou um conjunto habitacional com serviços diversos – o nome, Frauen-Werk-Stad, remete à palavra “frauenwerkstatt”, que significa “oficina de mulheres”. No Brasil, tudo caminha (com o perdão do trocadilho) a passos ainda muito lentos.

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Mulheres nas ruas ao longo dos anos

O conceito de caminhabilidade vai ao encontro do conceito francês de “flâner”, o flanêur, “aquele que vagueia a ermo”, termo que teve seus primeiros registros na primeira metade do século XIX. É alguém que entende e conhece a cidade como poucos, pois a memorizou com os pés.

Já o feminino, flâneuse, só foi descrito mais tarde e entendido de uma forma diferente. Uma ociosa. A mulher da rua era vista até mesmo como uma mulher da vida. A flâneuse era vista como uma prostituta. Não que de fato fossem. Mas as fontes informativas sobre o panorama das ruas no século XIX são masculinos e enxergam a cidade à sua maneira.

O livro “Flâneuse”, de Lauren Elkin (Editora Fósforo), discute a presença da figura feminina nos espaços públicos. E cita que, dos registros de mulheres da mesma época, o que se sabe é que estar  nos espaços públicos significava um risco. E elas já desejavam mudanças. Em 1879, a escritora Marie Bashkirtseff escreveu em seu diário:

“O que quero é a liberdade de passear sozinha: de ir, vir, de sentar nos bancos do Jardin do Luxembourg, de parar diante das vitrines, de entrar nas igrejas e nos museus, de passer à noite nas ruas antigas. É isso o que quero e é essa liberdade sem a qual não é possível se tornar um verdadeiro artista.”

Ela dizia que, mesmo que desafiasse as regras sociais, seria apenas meio livre, porque para uma mulher era considerado imprudente ficar perambulando. Guardadas as devidas proporções, é um pouco do que acontece ainda hoje. O desejo era – e ainda é – sermos invisíveis como os homens.

Ainda no fim do século XIX e começo do século XX, com a popularização do cinema e outras atividades de lazer na Europa, a presença feminina nas ruas passou a crescer. Mas isso dependia também do surgimento de locais seguros, nos quais pudessem estar sozinhas sem ser incomodadas, como cafés e salões de chás.

O Brasil também tem alguns registros. No Rio de Janeiro, a confeitaria Casa Café, fundada na segunda metade do século XIX, promoveu uma mudança social. O local, que funciona ainda hoje, foi um dos primeiros a vender sorvete e isso era feito com hora marcada, porque o sorvete chegava em navios e não era possível congelar. Como os homens estavam trabalhando, eram as mulheres que iam comprar.

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Na época elas ainda não frequentavam as ruas, ficavam apenas em casa cuidando dos filhos e afazeres domésticos. Mas, assim, aos poucos, começaram a poder ocupar territórios que eram tradicionalmente masculinos – não apenas as ruas, mas as próprias confeitarias e cafés.

Na década de 1950 surgiu também o conceito de “Olhos nas ruas”, proposto pela escritora, jornalista e ativista social norte-americana Jane Jacobs. Ela dizia que “uma rua movimentada consegue garantir a proteção das pessoas que circulam, mas, uma via deserta, não”. E defendia um ambiente urbano com janelas de casas e prédios voltadas para as calçadas, aumentando o número de “olhares” e, consequentemente, a segurança.

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Investimentos em caminhabilidade são positivos para as mulheres

Pesquisas sobre mobilidade urbana mostram que mulheres são maioria no transporte ativo (a pé ou de bicicleta) e coletivo (ônibus, trens e metrôs), enquanto os homens dominam os deslocamentos por veículos motorizados individuais.

Embora as mulheres representem 51,7% da população brasileira, elas são proprietárias de apenas 14% dos automóveis e de 6% das motocicletas (dados do estudo “O raio-x da mobilidade da mulher no Brasil” feito pela Younder EdTech em 2021).

E a razão pela escolha de se locomover de carro também é diferente para cada gênero. Para os homens, é uma forma de controlar melhor os horários de chegar e de ir embora. Já para as mulheres, o principal motivo é a privacidade. É uma decisão motivada pelo medo.

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Todos esses dados confirmam o que qualquer mulher já sabe na prática: o gênero é um fator de vulnerabilidade nos deslocamentos. Isso impede que muitas mulheres e meninas desfrutem dos espaços públicos da mesma forma que meninos e homens. Em longo prazo, é algo que reduz a participação feminina na vida pública, em atividades de lazer e também em viagens desacompanhadas.

Eu, que sou acostumada a viajar sozinha e gosto de ser uma pessoa caminhante, em uma busca simples em um banco de imagens, vejo essa primeira foto e sinto medo. A segunda, que parece estar em um espaço fechado, já não me desperta a mesma sensação.

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O livro “Cidades Feministas” aponta que, no fim das contas, essas limitações e tensões equivalem a um programa indireto, mas altamente eficaz, de controle social. Nossos medos reforçados socialmente nos impedem de habitar a cidade plenamente e de aproveitar ao máximo nossas vidas no dia a dia. A função social do medo das mulheres é o controle.

Evitamos atalhos em parques. Variamos nossas rotas de viagem. Evitamos radicalmente certos lugares. Recusamos convites para eventos ou saímos mais cedo porque não há um caminho seguro e acessível. Tudo isso tem consequências sociais, econômicas e psicológicas. É desgastante termos que nos preocupar com isso o tempo todo.

Não podemos ter o prazer da vida urbana de sermos anônimas na multidão, de observarmos as pessoas, de ocuparmos espaços, ficarmos sozinhas com nossos pensamentos enquanto estamos rodeadas por outras pessoas.

Como reverter essa situação no futuro?

Para estimular mudanças que ajudem a tornar as cidades mais caminháveis existe a Lei 12.587, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e vem destinando recursos orçamentários para que as cidades desenvolvam planos de mobilidade.

A ideia é possibilitar mais opções de lazer, oferecer mais segurança e estimular o uso de bicicletas e as caminhadas. O maior fluxo de pessoas ajudaria também a dar mais vitalidade a algumas regiões, estimulando o comércio e as opções culturais.

Além de ser bom para a própria cidade e também para o turismo, são mudanças que impactam diretamente no bem-estar e em uma melhoria na qualidade de vida, especialmente das mulheres.

O livro “Flâneuse” também aponta que uma cultura que não anda a pé é ruim para as mulheres. Tem um certo sentido autoritário. Uma mulher que não divaga – o que é tudo isso, quais são suas necessidades, estão sendo atendidas ou não – não vaga, não se afasta da família. Mas é frequentando as cidades que temos mais chances de construir um mundo justo!

Por tudo isso, é essencial e urgente aumentar a reflexão sobre as perspectivas femininas no planejamento urbano das cidades brasileiras, fazendo também recortes de raça, orientação sexual, idade e condição física. Com mais diversidade, os espaços se tornariam mais acessíveis, mais inclusivos e mais seguros.

Não é possível imaginar cidades igualitárias sem pensar sob perspectiva de gênero. Nossas necessidades urbanas e de infraestruturas são diferentes. Ao caminharmos pelas ruas, precisamos estar constantemente atentas, pois nos sentimos ameaçadas.

Em “Os anos”, de Virgínia Woolf (Editora Novo Século), livro de crônicas publicado em 1937 e considerado um ensaio sobre a vida real, a escritora fala sobre a relação entre indivíduo e sociedade a partir das transformações de uma família inglesa desde o ano de 1880.

Na obra, ela imagina uma liberdade de ir e vir para as mulheres nas ruas da cidade, conforme queiram, a pé. Talvez a única mudança de lá para cá é que o tema deixou de ser algo que se imagina e passou a ser algo pelo qual se luta de fato.

No “Guia de urbanismo sob perspectiva de gênero” lançado em 2008 pelas espanholas Marta Román e Isabela Velázquez, são colocados pontos como assegurar a presença das mulheres em todos os âmbitos sociais e políticos; entender e dar valor às tarefas do lar e outras que tradicionalmente ficam a cargo de mulheres; saber como utilizar a cidade em função do gênero, entre outros.

Uma cidade pensada a partir da perspectiva de gênero precisa ter ruas seguras, com iluminação adequada e, principalmente, com diversidade de usos, mesclando residências, empresas e comércios abertos em horários diversos.

Para mulheres, são pontos que impactam positivamente no cotidiano. E, para aquelas que viajam ou pretendem viajar sozinhas, são fatores que também fazem toda a diferença, pois a falta de segurança é o medo mais apontado quando se fala nesse tipo de viagem.

 

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