Projetos de caminhabilidade tornam espaços públicos mais agradáveis, acessíveis e seguros

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Andar pelas cidades, passar por ruas arborizadas, em frente a lojas e restaurantes, ver casas e construções com estilos arquitetônicos característicos do lugar, cruzar com pedestres. Tudo isso proporciona experiências que fazem toda a diferença ao aproveitar uma viagem – e no dia a dia também.

Por isso a caminhabilidade tem sido apontada como uma das questões mais significativas e relevantes para a melhoria da qualidade de vida urbana. Além de benefícios para as milhares de pessoas que se deslocam, tornar as cidades mais caminháveis possibilita mais opções de lazer, oferece mais segurança e melhora a poluição e os ruídos, já que o uso de carros tende a diminuir.

Mas, no Brasil, essas questões ainda são um desafio. São poucas as cidades nas quais o poder público tem investido no planejamento urbano, seja com o alargamento de calçadas, aumento na iluminação, diversificação do uso dos espaços, acessibilidade e outras medidas cada vez mais urgentes.

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Para estimular esse tipo de ação, em janeiro de 2012 foi aprovada a Lei 12.587, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), determinando que municípios com mais de 20 mil habitantes ou pertencentes a regiões metropolitanas desenvolvam planos de mobilidade, com auxílio de recursos orçamentários federais destinados a este fim.

O objetivo é melhorar os deslocamentos nos centros urbanos do país, garantindo que estejam integrados com outras políticas de desenvolvimento, como projetos de habitação e saneamento básico.

Plano Municipal de Caminhabilidade de Fortaleza

Mais de 10 anos depois, Fortaleza, no Ceará, é a única capital a ter um plano específico para privilegiar o pedestre: o Plano Municipal de Caminhabilidade de Fortaleza (PMCFor).

“Desde 2014, Fortaleza vinha avançando muito no sentido de privilegiar o transporte ativo por meio da bicicleta. Em 2017, uma equipe multidisciplinar foi montada para planejar a continuidade desse processo, agora dando foco também ao pedestre, atendendo às diretrizes estabelecidas pela PNMU”, explica Camila Girão, coordenadora de Desenvolvimento Urbano da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA) de Fortaleza.

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Fora do Brasil, em muitas cidades há espaços caminháveis – Imagens de Peggy e Jörg Möller por Pixabay

Importância da caminhabilidade

Em uma palestra no TED, o urbanista Jeff Speck, autor do livro “Cidades Caminháveis”. falou sobre o assunto, citando como exemplo a cidade de Portland, nos Estados Unidos. Na década de 1970, quando na maior parte do país eram realizadas ações com foco na melhoria do fluxo dos veículos – com o alargamento de ruas e a construção de estradas e grandes estacionamentos – Portland foi na contramão.

A cidade investiu em ruas mais estreitas e calçadas mais largas, estimulou o uso de bicicletas e as caminhadas. Os resultados positivos foram muitos: diminuição da poluição e, consequentemente, de doenças respiratórias; redução de acidentes e mortes no trânsito; aumento do fluxo de jovens e universitários, o que contribui para o desenvolvimento da cidade; melhoria na saúde de modo geral, graças à prática de atividades físicas; e gastos maiores com lazer.

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Portland, nos Estados Unidos, um exemplo de caminhabilidade – CC BY-SA 3.0, Link, via Wikimedia Commons

O maior fluxo de pedestres pela cidade também ajuda a dar mais vitalidade aos centros urbanos, estimulando o comércio e os espaços culturais, o que é bom para o turismo e impacta diretamente no bem-estar e em uma melhoria na qualidade de vida da população

“Olhos nas ruas”

A caminhabilidade vai ao encontro do conceito de “Olhos nas ruas”, criado pela escritora, jornalista e ativista social norte-americana Jane Jacobs. Para ela, um ambiente urbano com as janelas de casas e prédios voltadas para as calçadas, aumenta o número de “olhares” e, consequentemente, a segurança.

Reforçando algo que já devia ser óbvio, Jane Jacobs dizia que “uma rua movimentada consegue garantir a proteção das pessoas que circulam, mas, uma via deserta, não”.

Inspirado nela, surgiu o projeto Jane’s Walk (Caminhadas da Jane), um movimento global que realiza anualmente passeios a pé em vários destinos pelo mundo, incluindo algumas capitais brasileiras, com o objetivo de fomentar a ocupação dos espaços públicos e promover debates sobre a relação dos pedestres com as cidades.

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Projetos de caminhabilidade no Brasil

Para Camila Girão, da SEUMA de Fortaleza, a caminhabilidade pode ser definida como uma avaliação das características do ambiente urbano que contribuem para os deslocamentos ativos, por meio de um modelo de cidade sustentável, que torne as calçadas um espaço mais atrativo e confortável para os usuários e permita maior deslocamento ao ar livre.

A capital cearense tem uma população de mais de 2.5 milhões de habitantes (dados de 2020). Embora seja mais conhecida turisticamente pelas praias, com dunas, falésias e coqueiros formando muitos cenários paradisíacos, é uma metrópole bastante urbana que enfrenta questões como trânsito, poluição, violência e outros, o que faz com que as medidas em prol da caminhabilidade sejam necessárias.

E o objetivo do PMCFor é exatamente incentivar os deslocamentos de pedestres e pessoas com mobilidade reduzida nas calçadas, por meio da qualificação dos passeios, além de diagnosticar a situação das calçadas e estimular políticas públicas que invistam em projetos de caminhabilidade e na mobilidade humana.

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Fortaleza é a única capital brasileira com planos que privilegiam pedestres – ME/Portal da Copa, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

Além de orientações para o poder público, o projeto também tem orientações de comportamento para os cidadãos, por meio da cartilha “As Calçadas que queremos”, disponibilizada no site da Prefeitura de Fortaleza.

A coordenadora explica que nesta cartilha são apresentados de forma lúdica os padrões técnicos do município de Fortaleza para a construção, reforma e manutenção de calçadas acessíveis, seguindo a Legislação Municipal vigente, as Normas Técnicas Brasileiras e as recomendações de Desenho Universal.

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Ações pontuais nas cidades

Em outras cidades brasileiras de grande e médio porte, mesmo ainda não havendo projetos concretos como o PMCFor, algumas ações pontuais são realizadas. Uma das mais conhecidas é o Dia Mundial Sem Trânsito, em 22 de setembro.

Na data, há um incentivo para que as pessoas deixem seus veículos em casa e optem por sair a pé ou de bicicleta, estimulando a diminuição do trânsito e o aumento na adoção de práticas sustentáveis.

No entanto, é fundamental que os espaços públicos estejam preparados para permitir que esse tipo de deslocamento seja feito de forma segura, pois a sensação de vulnerabilidade, tanto em relação a acidentes como em relação a assaltos e furtos, ainda impede muita gente de deixar o carro de lado.

Outro desafio é pensar projetos de urbanismo que ampliem também a mobilidade das populações periféricas, sem reforçar a segregação socioterritorial, conforme alertou o estudo “Desafios para gestão equitativa da mobilidade urbana” realizado pelo ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) em 2022.

Mesmo que não seja possível realizar grandes obras de infraestrutura, as pequenas intervenções muitas vezes já ajudam a gerar benefícios, além de serem alternativas eficientes para o uso dos recursos públicos.

No turismo, um exemplo são os “walking tours” – passeios feitos a pé em determinadas regiões – que ajudam na ocupação dos espaços públicos por meio da cultura e da história.

Há também metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e outras, que aos domingos fecham algumas de suas principais vias para o trânsito e deixam as ruas abertas para a circulação dos pedestres, como acontece na Avenida Atlântica, em Copacabana, e na Avenida Paulista. Além de espaço para caminhar, pedalar e brincar, é comum ver apresentações culturais e atividades diversas, o que atrai não apenas moradores, mas também turistas.

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Avenida Paulista aberta aos domingos – Photograph by Mike Peel (www.mikepeel.net)., CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

É importante, ainda, que haja projetos de incentivo, como o prêmio Cidade Caminhável. Promovido pelo Movimento SampaPé! com apoio nacional do ITDP Brasil e internacional da organização Walk 21, o prêmio reconhece projetos realizados por órgãos públicos em municípios brasileiros que tenham contribuído para melhoria da caminhabilidade.

Em 2021, o projeto vencedor foi exatamente o de Fortaleza. E o prêmio impulsionou ainda mais o investimento nas ações. “Acreditamos que participar de redes que difundem e discutem a mobilidade ativa promove a iniciativa do PMCFor e que com essas interlocuções possamos aprender com as experiências de outros municípios também”, afirma Camila.

Outras iniciativas premiadas em 2021 foram a Reurbanização do Centro de Conde, município de cerca de 25 mil habitantes na Paraíba, e o Projeto Via Parque de Caruaru, em Pernambuco, um parque de 8 km na antiga linha férrea, que conecta mais de 16 bairros da cidade.

Espaços caminháveis garantem mais segurança principalmente para mulheres

Os espaços públicos pensados para o pedestre motivam a mobilidade ativa, gerando inúmeros efeitos benéficos para a saúde mental e física. E, ao tornar as cidades mais sociáveis, democráticas e saudáveis, naturalmente há um impacto maior na segurança, o que é outro benefício das ações em prol da caminhabilidade.

Poe isso, ao falar sobre viajar sozinha, é sempre necessário pontuar que os medos e inseguranças que são frequentes para mulheres não são uma exclusividade das viagens. São parte do dia a dia ao circular pelas cidades.

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A pesquisa “Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade”, realizada pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão com apoio da ONU Mulheres e Uber e divulgada em outubro de 2021, apontou que 96% das mulheres evitam passar por locais desertos e escuros.

Do total de entrevistadas, 69% já receberam olhares insistentes e cantadas inconvenientes em seus deslocamentos. E 35% sofreram importunação sexual. Ainda segundo a pesquisa, 83% das mulheres escolhem um caminho mais longo ou demorado quando acham que é mais seguro. E 80%, por medo, usam transporte de aplicativo para fazer trajetos que poderiam ser feitos a pé ou de transporte público.

Os números mostram que o gênero é um fator de vulnerabilidade nos deslocamentos urbanos. Sair de casa é, para muitas, um momento de medo. E essa insegurança diminui a liberdade de ir e vir principalmente de mulheres e meninas, que não conseguem desfrutar dos espaços da mesma forma que meninos e homens. Em longo prazo, isso reduz a participação feminina na vida pública, em atividades de lazer e também em viagens desacompanhadas.

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Mulheres se sentem mais seguras em ambientes com mais pedestres – Imagem de Tim Gouw por Pixabay

Para a Rede MulherANDA, coletivo formado por mulheres da área da mobilidade e do urbanismo, é fundamental transformar as cidades e mudar a maneira como o meio urbano está organizado, redividindo os espaços públicos em benefícios das pessoas.

“Sonhamos com cidades mais humanas, inclusivas e equitativas, pensadas por e para mulheres. Queremos cidades compactas, diversificadas e sustentáveis, desenhadas para a escala humana” – diz parte do manifesto publicado nas redes sociais.

Há que se pensar ainda em outros recortes, como populações negras, de baixa renda, pessoas com deficiência e LGBTQIA+, para as quais a sensação de insegurança nos deslocamentos também é maior.

E as medidas para garantir mais segurança são pautas que precisam estar inseridas no planejamento urbano, na forma como os bairros e as cidades se desenvolvem, proporcionando espaços mais vivos e maior interação entre as pessoas.

Em Fortaleza, alguns pontos positivos já são perceptíveis. “Ao mudar o foco da atenção das pessoas para as calçadas, temos como efeito transformador a mudança de espaços exclusivos de passagem para espaços que propiciam a permanência e a interação social. Esse ambiente, por consequência, se torna mais seguro. Ainda como efeito, ao ocupar o espaço público, vitaliza-se a economia local, já que a experiência direta com o comércio é gerada”, pontua Camila Girão.

A expectativa é de que experiências como esta possam inspirar mais destinos a investirem no urbanismo, de forma a tornar os espaços mais acessíveis, mais agradáveis e mais seguros. É urgente pensar em cidades para pessoas. Para todas as pessoas.

 

Foto principal: Rambla, em Barcelona, Espanha – por Dan Mills | Flickr

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